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Não há serenidade nenhuma. Só sinto um outro algo. Uma eterna perturbação dolorida, um desassossego crônico, pontiagudo, um rumor subterrâneo e lacrimoso por trás da alma, um marulho angustiado, apertado, tenso, assustado, bem no meio do peito. A sensação da despedida em mil portos e rodoviárias, quando o ônibus vira a esquina devagar ou o barco se perde no infinito, como se a gente fosse um lugar para o qual ninguém volta, como se a gente fosse um tempo que sempre já passou e toda alma já esqueceu. Assim como que um vazio desabrigado que ninguém vem socorrer, uma dor que ninguém vem acalmar. É um desespero despertencido de se estar deslocado sem nunca ter sido realmente colocado de verdade em lugar nenhum. O desamparo órfão de se não estar em lugar algum, como que sempre vagando invisível por uma cidade fantasma, eternamente, tudo é fantasma. É assim como que um vento escuro que atravessa os ossos da gente a toda hora, não há descanso, nem trégua, só um medo frio, gelado, agitado, na medula, que não sossega nunca, que não acalma, que não alivia. Uma represa de choro entre os seios, onde devia estar o coração, mas é uma água triste ali, encolhida, apavorada, como espinho aninhado na carne, um feto calcificado que nunca veio à luz nem mesmo foi notado e ali, ignorado, esquecido, inexistido, num ventre oco e hostil, petrificou-se antes do primeiro bater do coração, antes do primeiro choro poder jorrar. Esse desassossego de um aborto jamais expelido, preso ali para sempre, fadado a não ser, até seu sepulcro tornar-se por si um sepulcro também, destituído do direito de ser um algo outro que não isso. A miséria do choro antes do choro chorar, preso na garganta e nos olhos, tudo dói com uma pressão sombria, uma dor fria e sozinha, desassistida, não há quem nine, quem venha, quem tranquilize, nem mesmo quem esteja aqui junto, para presenciar nem que seja como expectador, muito menos como socorro ou descanso. Essa perturbação é a soma de todos os descasos e negligências, e o fruto último de um grande desamor, do abandono nessa camisa de força preta, escura como noite de lua nova. É o medo descarnado, com fome e frio nos ossos, num berço de ferro, gelado, no inverno, numa sala erma e sem móveis, no meio da noite, sem luz, sem colchão, sem coberta, sem vestes. É uma meta-solidão, o sozinho quando está sozinho, sozinho por fora e por dentro, sem fora nem dentro, o sozinho no mundo do ser sozinho do sozinho. O absoluto da solidão de uma coisa que nem existe. É o nada sem nada. É a falta de um si que nunca existiu. É um não-sendo faltando sem nunca ter sido.   #texto #prosa #escritos #redação #literatura #dor #solidão #solidao #medo #angústia #angustia #existencial #existência #existencia #ser #desamparo #abandono #psicanalise #psicanálise #freud #sigmundfreud #lacan #jacqueslacan #melanieklein #filosofia #ontologia #ontológico #ontologico